Por
Valério Mesquita
" A vida é uma rotina. Frase comum, chula, mas
verdadeira. Como pôde um espirro noturno ingressar na monotonia dos meus
hábitos? Ora, pela força da repetição. De um apartamento, do bloco de três
andares, ao lado de minha casa, ressoa, ecoa e assoa sonoramente um espirro
soturno, notívago, após as nove da noite que me arremete as madrugadas
silenciosas de Macaíba. Naquele tempo, a rua era uma aldeia globalizada. Nos
quintais os galos se repetiam brincando de código morse. Nas ruas a guarda
noturna soprava apitos, distintos e indistintos. Aqui, o espirro do meu vizinho
vem do alto. Desce e entra em minha casa como um som costumeiro da TV, do
rádio, da descarga ou do chuveiro.
Quantas vezes não me quedei silencioso,
refletindo aquela contração súbita e cronometrada dos músculos expiratórios? Do
meu quarto, fito, vez em quando, a janela acesa e misteriosa do meu vizinho. E
me questiono com a exatidão repetitiva do ar expulso pela boca e pelo nariz que não me
parece gripal, talvez alérgico, talvez ritual de arremesso de alguma olimpíada
esquisita do fluxo e refluxo da noite.
Não conheço até hoje o homem do espirro.
Seria gordo, magro, alto ou baixo? Não sei. Algumas vezes, procurei descobrir na saída
matinal para o trabalho ou no retorno, à noitinha. Tenho suspeitos. A ninguém
indaguei sobre a investigação. Poderiam me achar bobo ou intrometido. “Ora,
querer saber quem espirra no bloco”, talvez pudessem comentar.
São 21h45. Ouvi, há pouco, o último atchim.
Explosivo, arrastado como se quisesse absorver o que expeliu. Parece que sente
um gozo inexprimível. Um alívio nas mucosas ensandecidas repentinamente para
deleite de uma platéia invisível mas participante. Na verdade, como acontece
todas as noites, aquele fora a expiração final. O sossego voltou a reinar.
Ainda espiei a sua janela. A luz se apagara. O repouso do meu dragão havia
começado. Terminei essas linhas já pensando
que amanhã a rotina voltará. Uaatchim, uaatchim, uaatchim.
Sempre inicia com três petardos. Depois outros e mais outros. Até cumprir
os procedimentos notívagos do deitar, dormir e talvez o pesadelo de sonhar com
poderoso anti-histamínico ou antialérgico, eficientes no alívio da congestão nasal, rinite ou coriza.
Porque o bom mesmo para ele é espirrar. Uaatchim, uaatchim, uaathicm! Saúde!
Boa noite."
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